domingo, 14 de julho de 2019

Mar adentro

É nos dias de sol que a tua falta mais se sente, mãe. Tanto sem ti para partilhar, sabe a dor.

Uma dor fininha, de estilete, naquele lugar onde habitas para sempre. 
Um alfinete.
Só a lembrar que já não estás. E que a vida não terá a mesma cor, nem o cheiro doce das mangas maduras, nem o sabor do caramelo feito na altura.

A vida segue. Cheia de faltas. 

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Ensaio da morte

Ensaias a morte na cama do hospital enquanto te injectam mais uns dias de vida. Poucos, tu sabes. Vejo-te no quarto abafado, a que cada dia chega uma história nova. Dou por mim a abanar-te com um leque, num movimento que conheço demasiado bem. O cheiro doce da doença alarga as narinas e cola-se à memória.
E mesmo assim, num canto irrespirável duma sala fervilhante de dor, irradias luz. Cheiras a mar. Ao  mar do Guincho, cheio de ti. Onde se ouvem as tuas expressões pelo passeio da ciclovia, onde a areia ainda guarda os teus passos. A luz ilumina o teu sorriso e o mar que te esperou, abraça-te agora num movimento infinito que te perpetuará.

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Está um dia lindo para se morrer. Precisamos de dias para morrer. Para que a morte perca a fealdade com que nos arranca, hora após hora, a vida de quem amamos. Quando morrer, quero que seja num dia suave e ordeiro, como este. Como se o tempo fosse o certo. 

sábado, 24 de setembro de 2016

uma palavra


O meu filho, de três anos, tem uma amiga que não fala português. Sabe apenas uma palavra: banana. Para mim, tornou-se a palavra mais bonita do mundo. Acho que se pode viver com uma só palavra.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Os indicadores da Tia Manecas

Lobito, 1972-73

(talvez uma das recordações mais antigas)

Tap...tap...tap
tap...tap,tap, tap...tap,

Os indicadores da Tia Manecas,
a bater no volante do carro.
Uma caixa de viagem
que nos mudava de mundo.

Ao fim da tarde,
nem sempre
(porque as tarefas eram partilhadas entre um Mini Moke e um Autobianchi café com leite),
os dedos nervosos da Tia Manecas
contrastavam com o cabelo estático, atento.
E denunciavam o ritmo de um coração cheio.
Ora harmonioso,
tap, tap, tap
ora contrastante no desejo
taptaptap tap tap taptap

Os polegares colados ao volante.
E aqueles indicadores:
tap-tap-tap-tap,
como pestanas,
limpavam-me o olhar
e traziam-me o ritmo da vida,
o compasso da dança do fim da tarde.
Ao som do riso,
das histórias atropeladas,
do cheiro a mar,
das cores garridas.

Aqueles indicadores,
tap,tap,tap,
tap...tap...tap
taptaptap

Nervosos,
precisos,
tão conscientes da função
e tão longe da realidade.

Ali,
a marcar o passo de uma vida que parecia infinita.
Ali,
a brincar com o tempo.
Tap,    tap,    tap.
E os minutos a correrem,
irónicos...
Tap,     tap,     tap,     tap.

Na ponta daqueles indicadores,
no segundo preciso que desenham o ar,
volto ao calor.
Às pedras polidas do colégio,
à azáfama do fim da tarde,
à ilusão de uma vida que se escolhe.

Ali,
na ponta daqueles indicadores,
volto a ser feliz.

24 de Fevereiro de 2015

domingo, 27 de janeiro de 2013

das chegadas e outras visitas


Chega o novo ano sem surpresas. Vem a passo, como sempre, a seguir ao 31 de Dezembro. Faz um clique discreto à passagem das zero horas e nada mais.
A euforia é dos outros. Dos que gritam surdos de raiva ou esperança, de ilusão ou desepero, dos que acendem luzes, tocam cornetas ou disparam tiros que teimam em acertar nos filhos de alguém. De equívoco em equívoco, os comentadores de rua vão dizendo que o novo ano nada traz de bom, que a vida vai ser muito pior e vaticinam os horrores vindos da Europa, encharcando-me de um pessimismo que sabe a lama.

Limpo-me como posso, e olho mais além, com a tranquila convicção de que o ano que me traz um filho não poderá ser assim.






quinta-feira, 29 de março de 2012

Cem palavras

“…E desejo as maiores felicidades ao candidato”. O presidente cala-se com um aceno. Vestido a rigor, de fato emprestado, Guilhermino ouve o suor abrir a porta e sair devagar, deslizando numa viagem penosa. Primeiro pela fronte, depois, gota a gota, numa corrente imensa de medo e orgulho que desagua num rendilhado discreto sob a camisa.

O coração, de um arranque inusitado, engole a língua e as palavras com ela. Numa dança pouco clássica, os olhos marcam passo nas letras encavalitadas sem sentido. O rio galga os sapatos, e o corpo, humilhado, desfaz-se nesse tremor viscoso.

Do infeliz, nem uma palavra.