segunda-feira, 10 de maio de 2010

...um dia roubo a Páscoa.

"Pão quente e uvas, é do que me lembro quando penso nessa terra", diz-me a filha de uma cliente, colando mais um cromo de histórias numa caderneta de memórias já gasta. 

Numa frase, volto a Pinhel. O consultório molda-se ao odor perdido e volto à pequena sala de jantar onde na Páscoa, à espera do almoço de Domingo, descansavam os pastéis do Egipto. Proibidos, enchiam o ar de pecado que se transformava em saliva, na boca repleta de desejo.

A Páscoa era assim: um cheiro de bolos misturado com a lenha seca, barulhenta, a braseira a matar devagar, as corridas de casa em casa a visitar velhas senhoras carregadas de histórias sequestradas ao futuro. A paixão vestia-se de roxo, Judas ardia na praça e o coração tremia de vida.

Perco-me na imagem roubada. Com o cheiro quente das uvas de Setembro, chegam-me as tardes irrespiráveis, de calor seco, pintadas com fotografias de mulheres estranhas que nos atiravam, implacáveis, os traços em que nos iríamos tornar. Quanto mais longe nos sentíamos daquele passado, mais perto ele estava de nos apanhar.  

Volto a Pinhel, a uma casa fechada que acolhe lenços onde os lábios deixaram segredos, postais irreconhecíveis, cartas sem remetente, flores secas por entre páginas anónimas. Não há sótão nem cave, apenas um corredor que cospe quartos e salas de paredes brancas, impávidas guardadoras de vidas.

Fecho a porta devagar, sem ruído. Não as quero acordar.

segunda-feira, 8 de março de 2010

de faca e alguidar

O ano começou assim: “o pato não deve ter mais que 8 semanas e mata-se por asfixia para que não perca o sangue; guarda-se o fígado. Prepara-se primeiro um consommé bem temperado feito dos ossos de outro pato morto na véspera. Depois o nosso patinho vai assar no espeto apenas durante 20 minutos. Trincha-se às fatias, retirando as coxas que vão grelhar à parte. Esmaga-se a carcaça numa prensa especial e o líquido sanguíneo escorrente junta-se ao consommé já preparado. Esborracha-se o fígado, mistura-se com um copo de vinho do Porto e outro de conhaque, acrescenta-se ao caldo anterior e rega-se ainda com sumo de limão…”*.

Desde então começou a chover e não mais parou.

Conto os dias para a empada de rosas…


* Quitério, J (1996) Pato à Tour d’Argent in Culinário 2010, Assírio & Alvim