quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Diga-me, minha senhora, a que horas passa essa história de amor?

(À T., que descobriu que há muitos autocarros que não param onde queremos)

Muito pequena, não sei bem que idade tinha, mas os olhos ainda se abriam de surpresa em surpresa e brilhavam com o riso. Lembro-me dele, mas não me lembro do seu nome. Perdi-o.

Era da minha altura pois os seus olhos batiam nos meus, rodeados de uns caracóis que me faziam cócegas no nariz. Passávamos dias inteiros a correr à procura de aventuras, a caçar borboletas, a borrifar as horas com o leite em pó com que enchíamos a boca.

Lembro-me de fugirmos dos outros, na nossa brincadeira preferida, e de nos escondermos no armário do Tio Artur, uma arca gigante que navegava ao nosso desejo. Aí, muito escondidos, descobríamos partes um do outro. Mostrava a barriga em troca de um beijo na cara. O amor começou assim para mim, em trocas comerciais em que um não podia dar sem receber. Os nossos corpos foram-se revelando por entre uma fuga ao jogo das escondidas e o armário do Tio Artur.

Um dia, a aventura comercial cruzou-se com um carrinho verde, opulento. E o meu primeiro amor trocou-me por um objecto absurdo, que se deixava empurrar sem um pouco de vontade própria, submisso, numa ausência total de imaginação.

Não me lembro se chorei, mas o nome dele, não o perdi. Deitei-o fora!

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

outono

Lento se despega o corpo da pedra quente.

Sinto-o ganhar vida num borbulhar baixinho. O que era plano inicia a viagem de regresso e ganha forma. Em breve há-de vir uma palavra, e depois outra. De novo há-de nascer um período.

Aguardemos.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

o som do dia

Sou uma fotógrafa de palavras. Apanho-as num momento e perpetuo-as num livro amarelo que sempre me acompanha.

Por uma boa palavra já corri no asfalto quente, onde os meus pés descalços se derretiam numa língua preta que os engolia sem dó. Ainda sinto o cheiro amargo do alcatrão colado aos pulmões, transformando o rosa em castanho escuro.

Revejo-me numa praia vermelha onde, por uma palavra, me atirei ao mar e me deixei enrolar numa onda fria, de um azul brutal que desmaiava num segundo estrondoso. Cacei esse rugido numa folha branca, macia, livre.

Por uma palavra fui capaz de abrir a boca, sentir o vento afastar as bochechas, enchê-las de ar doce em pequenas bolas de algodão. Oiço-as dissolverem-se na boca como os estalinhos que comia em criança e que rebentavam aleatórios, fazendo os olhos fecharem-se assustados. Quando era forte, mesmo forte, os olhos enchiam-se de umas lágrimas curtas, muito tímidas, que se escondiam dos amigos.

Por uma palavra, comi um escorpião. Foi num lugar longínquo, numa noite húmida em que o calor transformava as gotas de suor que corriam pela pele escura, em cascatas reluzentes. O restaurante local era um espaço roubado ao passeio, em que um néon agressivo contornava a transparência lânguida das osgas. O som era uma mistura de ditongos incompreensíveis, carregados de expressões mais ou menos amistosas consoante a temperatura da cerveja.
A animação era total: empregados empapados faziam passar os pratos por cima das cabeças de um grupo de australianos cor-de-laranja, atiravam cervejas nacionais para um balde gigante repleto de gelo, traziam enormes fogareiros com carvão incandescente e gritavam pedidos para a cozinha. "Paraíso da cozinha local", disseram, como recomendação. E eu acreditei!
Finalmente, veio: um escorpião negro, em espeto, luzidio pelo óleo da fritura. Pareceu-me enorme e duvidei do sucesso da aventura. Mas encarei-o e trinquei uma perna ainda a medo. Partiu-se numa vontade crocante, de casca rija. A língua enrolou-se numa mistura de papel de arroz e migalhas de conchas finas. Ouvia o coração disparar e os ouvido enchiam-se de um ritmo cada vez mais rápido. A estranheza deu lugar à vontade de acabar depressa com aquilo e o corpo castanho-claro foi comido em dentadas largas. Na boca, a cerveja fria e amarga, limpou os restos de um sabor sem alma.

Por uma palavra, vou pelo silêncio e encaixo-me na sombra de um jasmim, onde uma carocha abre as asas e me devolve ao espaço. Talvez volte para contar.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Plic ploc

Ia tranquila pela vida quando tropecei num bocado de mim. Era cor-de-rosa, o que estranhei; não uso essa cor na minha pele. Olhei-a espantada. Pareceu-me vagamente familiar.

Era a parte esquecida.

Estava envolta em alcatrão, de tanto rebolar por uma estrada qualquer. Peguei nela com alguma estranheza, confesso. Sacudi-lhe o pó acreditando encontrar uma qualquer referência, tipo número de motor. Precisava de saber de onde vinha. Vi uma pequena janela num dos topos e espreitei. Ao princípio tudo escuro, pouco definido. Depois o olho acostumou-se à escuridão do passado e desenhou as curvas dos sonhos esquecidos. Ali estavam elas, as ideias do que deveria ter sido. Inquieta, soprei. Não se mexeram. Firmes, mostravam-me soberbas, que o poder das ideias não desaparece na brita. Voltam sempre, às vezes pelo chão, outras aterram-nos em cima com a brutalidade de um traumatismo craneano. Mudamos ao sabor da vontade das crianças esquecidas, não antes, nem depois.

Pus a parte de mim por debaixo do braço e afaguei-a. Não sei onde a voltar a pôr, mas sei que já não poderei continuar a viver sem ela.

terça-feira, 12 de maio de 2009

batem leve, levemente

Recebo pelo correio uma carta de amor. Não tem remetente, mas o meu nome pisca num néon ordinário.
Abano-a e soltam-se pequenas letras que se formam em frases mais ou menos compridas, daquelas que acabam em vem.
Apago algumas só pelo prazer de as imaginar escondidas por entre linhas. Da frase fica: "quero-te neste lugar, que ocupas sem medo". Pinto o medo de noite e largo as estrelas sobre o lugar. Deito-me e sinto a brisa das palavras que me são ditas ao ouvido.
É infinito o poder de uma carta de amor, não achas, Ofélia?

terça-feira, 28 de abril de 2009

uma pausa no elevador

Ouvi um zumbido por trás da porta. Abri-a devagar e espreitei. Era um beijo.
Vinha assim pela janela, sem pressa, sem nome, sem remetente. Aceitei-o.


Gosto dos beijos soltos, descomprometidos. Beijos que aquecem os lábios nos dias frios de uma primavera indecisa, e que se descobrem num sabor que se dissolve devagar. Este tinha o gosto da baunilha no topo de um éclair.

terça-feira, 21 de abril de 2009

agora que salvei o blogue da morte quase certa, sou responsável pela sua vida

Tenho andado às voltas com esta coisa da memória. Não a que se estuda mas a que se sente. Aquela que vem em pacotinhos e se prende ao tornozelo. Às vezes solta-se e perde-se, outras vem por correio. Aconteceu-me isso.

Um dia, a caminho da adolescência, perdi-a. Olhei para trás e nada. Nem um lugar, nem uma cara, nem um cheiro, nem um pêlo arrepiado numa qualquer lembrança. Nada!
Sentia-me livre para o futuro como um papel em branco que se voluntaria para se encher de palavras mais ou menos grandes.

Passei anos a colar-lhe substantivos, verbos, advérbios, adjectivos, construções gramaticais verosímeis, tempos e artigos que em desespero procuravam ligar histórias. As palavras corriam de beijo em beijo ao sabor das descobertas, cada vez mais conhecidas. As dores que pareciam arrancar as entranhas desapareciam no dia seguinte e a pele cobria-se de novo de laranjeiras de gosto suave que se ofereciam sem grande resistência. Tudo parecia acontecer entre o hoje e o agora. Constrói-se a memória num jardim que às vezes se esquece de regar, e colhem-se as flores sem lhes dar nome.

A adolescência não precisa da memória - tem pernas, braços, dedos longos que chegam onde as palavras não cabem.

Olho de novo o embrulho que, incrédula, seguro nas mãos. Sopro e abre-se em folhas claras, pouco nítidas, sucalcadas pelas gotas de chuva quente de um país que não recordo mas que se cola à minha pele numa tatuagem teimosa.
O pacote solta-se das mãos. Tento agarrá-lo e vejo-me a dar nome às nuvens, a comer gelados num sítio que não existe e a colorir memórias com lápis de cor.

Deve ser isso, penso. As memórias são bocadinhos de papel desenhado a preto que se vão preenchendo com as cores que se sente.
Que importa se existimos nelas.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

longe vão os cus de judas

Não gosto de despedidas mas sei reconhecer uma boa quando a vejo. E a do António é boa! Discreta e poderosa. Vai-nos deixando com pequenos avisos, ou grandes.
Leio uma vida que se fecha devagar. Volta a si, ao pequeno António, às tias, à prima Ana Maria, ao arquipélago da insónia onde, como Juan Rulfo, o vejo encontrar-se com os mortos, tornando-os vivos numa memória que se perde.
Reconheço no seu aceno, a paz de quem já quase tudo cumpriu. “Só mais dois livros”, avisa. Perversa espera esta, de quem deseja a história que será a última.

Sento-me com o António e regresso sem aviso a páginas de memórias. Vejo as minhas personagens esbatidas encherem-se da intensidade da paixão. Entram pela janela do sótão, sentam-se à mesa, desfazem-me a cama, estrelam ovos no meu fogão, invadem a minha vida. Gritam palavras que não compreendo mas que transporto na palma da mão, como especiarias raras de reinos longínquos. Deixo-as cair suavemente e vejo-as transformadas em pensamentos que deslizam entre notas, bagos e cores, sem pressa. De repente, sou de novo caneta cheia de tinta entre dedos nervosos, e deixo-me ir nesta viagem nova. A palavra tem a cor dos amantes e vai onde a morte não chega.

Re
equipo a mochila para a outra etapa e deslizo pela noite escura.

Ao António, um sorriso. Aceito a partida quando tiver de ser.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Pequeno aviso

Este blogue não está morto: está em período de reflexão. Hibernou. A condizer com a época, entrará em funcionamento no Domingo. Ou segunda