quinta-feira, 4 de setembro de 2008

My grandmother had a farm in Africa.

E um hotel. E filhos. E netas. E cães com nomes de rios. E rondas nocturnas, de espingarda na mão. Mas não escreveu um livro. Nem teve o robert redford (embora quanto a isso não possa afirmar com toda a certeza, porque existem partes nas vidas das nossas avós que não nos pertencem).

Teve, nos últimos 40 anos, uma relação privilegiada com Deus. Escolheu mudar de religião, aplicou-se no seu estudo, na prática e em viver essa relação com prazer. Sei que se não estiver ocupada com o jardim, estará a conversar com o seu melhor Ouvinte. Vejo-a até a discutir algumas das tácticas do anterior Adversário, de um jogo que foi sério, e nem sempre justo, para ambos os lados (aqui para nós, Deus, aquela penúltima prova, o cancrozinho aos 99, era dispensável. Mas também Te deu trabalho... e no fim, sei que reconsideraste). Vi, no último sorriso que lhe imaginei, um traço leve de reconciliação.

De todas as relações, a dela com Deus foi a que ficou até mais tarde, na sua memória. Deixo a mensagem para aqueles que possam ter ideias... e arrisco um pequeno excerto ilustrativo, não vá a dúvida pairar:
"Diga-me, minha senhora, a sua mãe também mora aqui?", pergunta a minha avó à filha, em versão passa-me-o-sal, enquanto almoçavam na casa onde viviam.
“Sim, sim!", responde a filha, a pensar que longe iam os anos em que achava "a Mamã, um bocadinho esquecida"...
"E como está a sua mãezinha de cabeça?" - continuou a minha avó, sem aviso prévio.
"Um bocadinho esquecida", responde a minha mãe, no alto da sua formação prática contínua, sabendo que "não se deve mentir".
"Ai, coitadinha. Eu mesmo assim, graças a Deus, de cabeça estou muito bem!", rematou, sem espaço para defesa.

Os últimos anos foram vividos assim, num estado de levitação (chamo-lhe eu), em que a realidade deixa de ser construída na nossa relação, mas passa a ser partilhada de outra forma. Transformamo-nos em meros recolectores de informação. Ecopontos da memória. Recebemo-la como se apresenta, às vezes lisa e limpa, outras vezes gordurosa e escorregadia, e temos como função reaproveitá-la, conscientes de que não regressará à sua forma original.

Mas perguntem, e Deus? Deus ficou! Até ao fim! Quando já tinha desaparecido a preocupação em voltar para casa do pai, quando já só havia energia para respirar, ao seu salmo preferido "O Senhor é o meu Pastor", vinha, não sei de onde, um sopro que se transformava em palavras "nada me faltará"!
Pois é, meus amigos, Deus ficou com ela até ao fim e veio ao funeral!

À pergunta da agente funerária: "A Avozinha deixou alguns bens?", reformulo aqui a resposta: "Sim, um cesto com Deus"

Até logo, Vó.

à avó Alice, para quem não ter chegado aos 100 não foi surpresa, foi atitude.