terça-feira, 21 de abril de 2009

agora que salvei o blogue da morte quase certa, sou responsável pela sua vida

Tenho andado às voltas com esta coisa da memória. Não a que se estuda mas a que se sente. Aquela que vem em pacotinhos e se prende ao tornozelo. Às vezes solta-se e perde-se, outras vem por correio. Aconteceu-me isso.

Um dia, a caminho da adolescência, perdi-a. Olhei para trás e nada. Nem um lugar, nem uma cara, nem um cheiro, nem um pêlo arrepiado numa qualquer lembrança. Nada!
Sentia-me livre para o futuro como um papel em branco que se voluntaria para se encher de palavras mais ou menos grandes.

Passei anos a colar-lhe substantivos, verbos, advérbios, adjectivos, construções gramaticais verosímeis, tempos e artigos que em desespero procuravam ligar histórias. As palavras corriam de beijo em beijo ao sabor das descobertas, cada vez mais conhecidas. As dores que pareciam arrancar as entranhas desapareciam no dia seguinte e a pele cobria-se de novo de laranjeiras de gosto suave que se ofereciam sem grande resistência. Tudo parecia acontecer entre o hoje e o agora. Constrói-se a memória num jardim que às vezes se esquece de regar, e colhem-se as flores sem lhes dar nome.

A adolescência não precisa da memória - tem pernas, braços, dedos longos que chegam onde as palavras não cabem.

Olho de novo o embrulho que, incrédula, seguro nas mãos. Sopro e abre-se em folhas claras, pouco nítidas, sucalcadas pelas gotas de chuva quente de um país que não recordo mas que se cola à minha pele numa tatuagem teimosa.
O pacote solta-se das mãos. Tento agarrá-lo e vejo-me a dar nome às nuvens, a comer gelados num sítio que não existe e a colorir memórias com lápis de cor.

Deve ser isso, penso. As memórias são bocadinhos de papel desenhado a preto que se vão preenchendo com as cores que se sente.
Que importa se existimos nelas.

4 comentários:

Jaime Latino Ferreira disse...

SENTIR


Se eu perder o meu sentir

Perco a vontade de Ser

Eu deixarei de me ver

Sem saber o que pedir


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 22 de Abril de 2009

manuela baptista disse...

SER

No tempo em que tudo é novo e em que apenas temos saudades de futuro, a memória faz sentido para sabermos a dimensão dos rios e os números de telefone dos melhores amigos. As flores não precisam de nomes, porque são flores e a sua natureza justifica-as.

Mas qual é a natureza do que vivemos e sentimos e transportamos, sem que ocupe espaço ou tempo?

Já os blogs são coisas estranhas, apoderam-se das nossas memórias e ao serem regados podem fazer curto ou longo circuito.

Manuela Baptista

Lara disse...

Memórias são também as telas brancas onde pintamos com as cores mais belas que temos no nosso imaginário.

Isabel disse...

Os blogs, ex-diários da era pré-digital t~em a vantagem de nãp nps sentirmos mal al lê-los. Bem pelo contrário.
Assim de uma modo tacitamente aceite pelos dois lados o diário interactivo vai sendo moldado não por uma só memória mas pelas memórias e afectos dos voyers que assim encontram outro modo de estar com o escritor. Escritos nas peles.