quarta-feira, 24 de junho de 2009

o som do dia

Sou uma fotógrafa de palavras. Apanho-as num momento e perpetuo-as num livro amarelo que sempre me acompanha.

Por uma boa palavra já corri no asfalto quente, onde os meus pés descalços se derretiam numa língua preta que os engolia sem dó. Ainda sinto o cheiro amargo do alcatrão colado aos pulmões, transformando o rosa em castanho escuro.

Revejo-me numa praia vermelha onde, por uma palavra, me atirei ao mar e me deixei enrolar numa onda fria, de um azul brutal que desmaiava num segundo estrondoso. Cacei esse rugido numa folha branca, macia, livre.

Por uma palavra fui capaz de abrir a boca, sentir o vento afastar as bochechas, enchê-las de ar doce em pequenas bolas de algodão. Oiço-as dissolverem-se na boca como os estalinhos que comia em criança e que rebentavam aleatórios, fazendo os olhos fecharem-se assustados. Quando era forte, mesmo forte, os olhos enchiam-se de umas lágrimas curtas, muito tímidas, que se escondiam dos amigos.

Por uma palavra, comi um escorpião. Foi num lugar longínquo, numa noite húmida em que o calor transformava as gotas de suor que corriam pela pele escura, em cascatas reluzentes. O restaurante local era um espaço roubado ao passeio, em que um néon agressivo contornava a transparência lânguida das osgas. O som era uma mistura de ditongos incompreensíveis, carregados de expressões mais ou menos amistosas consoante a temperatura da cerveja.
A animação era total: empregados empapados faziam passar os pratos por cima das cabeças de um grupo de australianos cor-de-laranja, atiravam cervejas nacionais para um balde gigante repleto de gelo, traziam enormes fogareiros com carvão incandescente e gritavam pedidos para a cozinha. "Paraíso da cozinha local", disseram, como recomendação. E eu acreditei!
Finalmente, veio: um escorpião negro, em espeto, luzidio pelo óleo da fritura. Pareceu-me enorme e duvidei do sucesso da aventura. Mas encarei-o e trinquei uma perna ainda a medo. Partiu-se numa vontade crocante, de casca rija. A língua enrolou-se numa mistura de papel de arroz e migalhas de conchas finas. Ouvia o coração disparar e os ouvido enchiam-se de um ritmo cada vez mais rápido. A estranheza deu lugar à vontade de acabar depressa com aquilo e o corpo castanho-claro foi comido em dentadas largas. Na boca, a cerveja fria e amarga, limpou os restos de um sabor sem alma.

Por uma palavra, vou pelo silêncio e encaixo-me na sombra de um jasmim, onde uma carocha abre as asas e me devolve ao espaço. Talvez volte para contar.

2 comentários:

jaime latino ferreira disse...

PELA PALAVRA


Pela palavra desdobrei-me em tantas e tantas e volto-me a desdobrar sem descanso em tantas mais palavras, a tal ponto que hoje me sinto com todo o à vontade para dizer, escrever que nem só da palavra vive o Homem!

Se ele dela apenas conseguisse viver a fome saciar-se-ía com a palavra ...

E se tenho fome da palavra e dela me sacio sei, contudo, que ela não basta para viver.

Se à palavra me mantenho fiel sei também que essa fidelidade não é exclusiva e que de outras se complementa.

É, no entanto, pela palavra que, nos sons de cada dia, melhor vou conhecendo os Outros, o Mundo também ...

... e a Ti!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 26 de Junho de 2009

manuela baptista disse...

o roubo do dia

De repente a câmara fez um pequeno ruído, talvez o som do dia e desapareceram com o rabo entre as pernas!

Desde Maio que nos faziam companhia, um ao lado do outro, irreverentes, plasmados.
Quando um fazia Plic o outro respondia ploc, quando o ploc fazia plic, o Plic respondia ploc.

E agora?
Venho aqui
emprestar
roubar
dar
palavras.

As que tenho, dou.
Das que duvido, empresto.
Roubo, as que invejo.

Por uma palavra roubada, aprisionada, me faço ladrão, escorpião.
E mergulho num entardecer indiano enrolada em jasmim.

Manuela Baptista
Estoril, 28 de Junho 2009