quarta-feira, 13 de maio de 2009

Plic ploc

Ia tranquila pela vida quando tropecei num bocado de mim. Era cor-de-rosa, o que estranhei; não uso essa cor na minha pele. Olhei-a espantada. Pareceu-me vagamente familiar.

Era a parte esquecida.

Estava envolta em alcatrão, de tanto rebolar por uma estrada qualquer. Peguei nela com alguma estranheza, confesso. Sacudi-lhe o pó acreditando encontrar uma qualquer referência, tipo número de motor. Precisava de saber de onde vinha. Vi uma pequena janela num dos topos e espreitei. Ao princípio tudo escuro, pouco definido. Depois o olho acostumou-se à escuridão do passado e desenhou as curvas dos sonhos esquecidos. Ali estavam elas, as ideias do que deveria ter sido. Inquieta, soprei. Não se mexeram. Firmes, mostravam-me soberbas, que o poder das ideias não desaparece na brita. Voltam sempre, às vezes pelo chão, outras aterram-nos em cima com a brutalidade de um traumatismo craneano. Mudamos ao sabor da vontade das crianças esquecidas, não antes, nem depois.

Pus a parte de mim por debaixo do braço e afaguei-a. Não sei onde a voltar a pôr, mas sei que já não poderei continuar a viver sem ela.

6 comentários:

jaime latino ferreira disse...

O PODER DAS IDEIAS


O poder das ideias é assim como o de uma palavra que se escreve.

Ela está ali quieta, inerte, sem se mexer.

Mas quando conjugada com as outras numa frase e desta numa composição ganha vida, remexe-se e remexe-nos inquietante e por mais que encoberta ou escurecida esteja pela brita agiganta-se e acorda, de novo, para o futuro.

As ideias vão do passado para o futuro e estão sempre a tempo!


Jaime Latino Ferreira
Estoril, 13 de Maio de 2009

manuela baptista disse...

Ping ping

E finalmente lembrei-me, posso pô-la à janela, assim sempre vê quem passa!

Relaxei o braço e soltei essa parte de mim há que tempos ali entalada à espera e devagarinho coloquei-a no jardim, num vaso de mangericão virada para o sol nascente.

Ela pareceu contente, mas eu senti assim uma espécie de saudade e de escuridão misturadas,uma espécie de lágrima, não salgada mas doce, que me inundava e confundia.

"Que estranhos somos" pensei, mas só depois reparei que estava a chover. Ora bolas! Peguei no meu olho grande e azul e voltei a colocá-lo debaixo do braço.

Nunca mais largo pedaços de mim.

Manuela Baptista

Sofia M disse...

Manuela,

Simplesmente delicioso.

Obrigada.

Sofia M disse...

Jaime,

As ideias com sentido são aquelas que batem nas palavras de quem nos ouve, de quem sacode a brita e nos dá vida.

Obrigada.

Anónimo disse...

Soltam-se sempre esses bocados de ti quando passas por essas imagens soltas e esses beijos descomprometidos? É da delicadeza com que abres essas portas e janelas para uma vida de instantes felizes, mirtilo. Sacode-lhes simplesmente o pó do tempo e deixa que se transformem em momentos presentes, animados e coloridos que te fazem sorrir ao olhar para essa parte de ti.

Anónimo disse...

Bocadinhos de nós, mesmo perdidos, são a compensação de tudo o resto. Aqueles bocadinhos que só nós controlamos, dos quais só nós nos lembramos, que só nós sabemos que existem. Aqueles bocadinhos de sonhos que se interrogam de quando será o fim, o início, ou mesmo a continuação. Aqueles bocadinhos de memórias que não se esquecem por serem isso mesmo, memórias. Aqueles bocadinhos que dormem aconchegados debaixo do coração e que se escondem dentro de nós por terem medo de serem esquecidos. Aqueles bocadinhos que nos fazem ser quem somos.

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